quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Espectros sobre 1964

Caio Navarro de Toledo - Abril 2006

Passados mais de 40 anos, 31 de março de 1964 continua sendo comemorado por militares e civis que participaram do golpe de Estado que derrubou o governo constitucional de João Goulart e bloqueou a realização de reformas sociais e econômicas que, nos anos 1950 e 1960, eram reivindicadas por amplos setores da sociedade brasileira.
Se, em 2004, o polêmico General Francisco Roberto de Albuquerque, Comandante do Exército, elaborou uma moderada Ordem do Dia sobre 1964, agora em 2006 a história foi outra. Em uma nota – lida no dia 31 de março último para cerca de 200 mil soldados em quartéis de todo o país –, o Comandante do Exército exaltou o papel heróico de sua Força na “construção da Nação brasileira”. Discorrendo sobre 1964, afirmou que 31 de março “é memória, dignificado à época pelo incontestável apoio popular, e une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional”. Determinado na missão de defender as instituições democráticas e a nacionalidade, o Exército, vitorioso em 31 de março, nunca teria deixado de ser “generoso com os vencidos”.
Recorde-se que, em outubro de 2004, seis meses após a sóbria Ordem do Dia acima aludida, o Centro de Comunicação Social do Exército – com o pleno conhecimento e anuência de seu Comandante – publicou nota no jornal Correio Braziliense na qual se justificava o método de tortura e assassinato, nas dependências militares, em nome da defesa da chamada “Revolução de 1964”. De imediato, o Ministro da Defesa, José Viegas, manifestou veemente protesto pelo despropósito da nota, cuja responsabilidade maior provinha de um subordinado seu na hierarquia ministerial. Diante do pedido do Ministro da Defesa ao governo, propondo a demissão do Comandante do Exército, o General – aceitando sugestão de assessores presidenciais – recuou mediante uma “nota de retratação”. Lula preferiu dar proteção ao General, que permaneceu no cargo de Comandante do Exército, enquanto ao civil José Viegas não restou senão a demissão do Ministério.
Mas não são apenas os militares que soam as trombetas em torno de 1964. Em um depoimento que foi publicado em 2003 no livro 1964 - 31 de março: o Movimento Revolucionário e sua História (Biblioteca do Exército Editora), o ex-czar da economia brasileira, Delfim Netto, não poupa elogios àqueles tempos em que “éramos felizes e não sabíamos”... (Lembremo-nos também que eram exatamente estes os dizeres de um adesivo que o então candidato a deputado federal, Delfim Netto, largamente distribuiu e foi afixado nos automóveis das classes médias e da alta burguesia paulista.) Entre as “pérolas delfinianas” encontradas na entrevista que concedeu à História Oral do Exército – projeto que, como esclarece o coordenador geral, visa levar a “verdade” aos brasileiros “cativos da má-fé ou da “ignorância” sobre 1964 –, uma se destaca pelo seu tom debochado e agressivo.
Na mesma linha dos virulentos ataques do arquiconservador economista Eugênio Gudin – para quem o governo Goulart esteve “encarniçadamente decidido a destruir, desmoralizar e até prostituir” a ordem econômica e social –, Delfim Netto agora afirma: “Havia (no governo Goulart) uma desorganização completa. Não existia liberdade coisa alguma. A idéia de que o Movimento de 1964 levou a uma ocupação do Governo é falsa. O Jango abandonou o Brasil. Esses canalhas estão por aí dizendo que iam salvar o Brasil e nós, hoje, temos uma prova concreta do que eles produziam: uma nova Cuba” (p. 154, tomo 5).
Tudo leva a crer que foi para evitar “uma nova Cuba” que o ex-czar da Economia mandou “às favas todos os escrúpulos de consciência” – como foram as palavras de seu loquaz colega de Ministério, Cel. Jarbas Passarinho – na reunião ministerial de dezembro de 1968 que instituiu o AI 5, cujo efeito foi o de radicalizar a ditadura militar com sua seqüência imediata de prisões e repressão aos que ousavam se opor aos governos militares. (Na entrevista publicada em 2003, Delfim reitera que, hoje, se preciso fosse – mesmo conhecendo aquelas funestas conseqüências ­ – não titubearia em assinar um novo AI 5.)
Na lógica dos “vencedores de abril de 1964”, também foi para “salvar a democracia” e tornar o país mais “feliz” que o ex-Ministro, em 1969, sob as ordens do banqueiro Gastão Vidigal, se prestou a “passar o chapéu” na elegante mansão de dona Veridiana Prado, localizada no então aristocrático bairro de Higienópolis, na cidade de São Paulo. Como informa o jornalista Elio Gaspari (A Ditadura Escancarada, p. 63), reunidos num prazeroso almoço, quinze dos maiores banqueiros do país sensibilizaram-se com os robustos e certeiros argumentos de Delfim no sentido de, patrioticamente, financiarem a criação da Operação Bandeirante (Oban), que nos anos seguintes se tornaria sinônimo de repressão e morte. Afinal, o país precisava, urgente, se livrar da canalha comunista e de esquerda...
Na construção de uma cultura democrática é indispensável que todos os agentes e atores políticos, de forma sistemática e rigorosa, exerçam a autocrítica sobre seus gestos e práticas. Assim, partidos, movimentos e personalidades políticas de orientação progressista – nacionalistas, humanistas cristãos, socialistas, comunistas, etc. – não devem se recusar em admitir equívocos cometidos na luta política e ideológica que antecedeu o golpe de 1964. Isso significa dizer que esses setores também têm responsabilidade política pelos eventos que culminaram na ruptura democrática. (Freqüentemente, esses erros se expressaram pelo radicalismo verbal, pela subordinação política ao hesitante e ambivalente governo Goulart, mas, sobretudo, pela incapacidade política desses setores na organização dos trabalhadores e das camadas populares na batalha pelas reformas sociais e na luta pela radicalização da democracia política.) Mas, definitivamente, é inaceitável atribuir ao conjunto das esquerdas um compromisso com o golpismo. Não deixa de ser uma grave concessão aos ideólogos da direita, afirmar, como faz a recente historiografia revisionista que, no pré-1964, “todos eram golpistas”.
Se nos anos 1960 nem todos foram golpistas, cabe àqueles que efetivamente destruíram a institucionalidade democrática então vigente a maior responsabilidade no sentido de reconhecerem publicamente os graves danos e erros por eles cometidos durante os 20 anos de regime militar, a começar pelo ato inaugural do golpe de Estado. Do ponto de vista de uma consistente cultura democrática, é inadmissível que segmentos importantes da sociedade civil e os setores majoritários das Forças Armadas se recusem ao imperioso exercício da crítica e autocrítica de seu passado.
A defesa intransigente e a apologia dos “heróicos feitos” da chamada “Revolução de 1964”, bem como a renovada justificativa das violências perpetradas pelo regime discricionário – feitas nestes 42 anos seja por militares seja por civis – em nada contribuem para a consolidação de uma cultura política democrática no Brasil.
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Caio Navarro de Toledo é professor colaborador voluntário do IFCH/Unicamp.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil